quinta-feira, 13 de outubro de 2011

A Análise Funcional da Mentira

De acordo com o Dicionário Escolar da Língua Portuguesa da Academia Brasileira de Letras (2008, p.849):

Mentir (men.tir) v. 1. Afirmar como verdadeiro o que é falso; dizer mentira(s); enganar, ludibriar: mentir a idade; O homem público não pode mentir à sociedade; Tinha o mau hábito de mentir. 2. fig. Dar margem a engano; induzir em erro; iludir, enganar: A estatística e seus números não mentem.

Mentira (men.ti.ra) s.f. 1. Afirmação contrária à verdade; engano, falsidade, falácia: Mesmo diante das provas o acusado insistia em suas mentiras. 2. Falsa aparência; ilusão, engano: Julgou ter encontrado o amor eterno, mas era mentira.

Mentiroso [ô] (men.ti.ro.so) adj. 1. Que habitualmente conta mentiras; mendaz. 2. Que é contrário à verdade; falso, enganoso: promessas mentirosas.



 
Temos num primeiro momento uma definição um tanto quanto imprecisa do verbo (comportamento) de mentir, que se resumiria a dizer que é o ato de não dizer a verdade. Um dos problemas que podemos levantar disso é: O que vem a ser a verdade? Segundo o próprio dicionário (2008, p.1281):

Verdade (ver.da.de) s.f. 1. Aquilo que é real; verdadeiro: Às vezes a verdade dói. 2. Correspondência à realidade; exatidão: seu depoimento corresponde à verdade. 3. Princípio religioso, científico, moral etc. e, que se baseiam doutrinas, crenças, atitudes: A ressurreição de Cristo é verdade básica dos cristãos.

Verdadeiro (ver.da.dei.ro) adj. 1. Que tem caráter de verdade porque corresponde à realidade; fiel: uma imagem verdadeira. 2. Em que se encontra a verdade: autêntico, exato: uma narrativa verdadeira. 3. Em que há honestidade, sinceriade, um amigo verdadeiro. 4. Real, não fictício; não fantasioso: um herói verdadeiro. 5. Correto, exato, real: a solução verdadeira. 6. Genuíno, autêntico: um verdadeiro Volpi; uma verdadeira aguardente.

Quando procuramos por verdade o dicionário limita-se a nos dizer que é aquilo que faz referência a “Realidade” ao “Real”, ou então é aquilo que é o contrário da fantasia, do fictício, do mentiroso, incidindo em uma explicação circular.
Outro dado interessante que podemos observar é que não há um verbo específico para o “Dizer a Verdade” como há para o “Dizer mentiras” que é o Mentir. Isso pode ser explicado porque a Verdade é culturalmente entendida como um conceito, um ente muitíssimo importante em discussões filosóficas desde a antiguidade, mas a mentira é apenas um ato de negar a verdade, ou ser contrário a ela, tendo assim surgido o verbo para este comportamento específico (Russell, 2002).
O que viria então a ser, essa realidade que precisamos relatar com precisão para que nosso ato seja chamado de verdadeiro?
Na antiguidade Parmenides de Eléia (aproximadamente 350 AEC até 460 AEC*), definiu a realidade como aquilo que “É” sendo famosa sua seguinte frase:
“O que é, é. O que não é não pode ser”
Brevemente, para uma coisa “Ser” ela deveria conter em si a  “Atemporalidade”, ou seja não ter inicio e nem fim, sempre ter existido; a “Não-Espacialidade”, ou seja, não pode ter uma extensão determinada, pois se tiver extensão, pode-se supor algo para fora dela;  a “Indivisibilidade”, ou seja ela não pode comportar outra coisa, pois se comportasse outra, negaria a si mesma pela outra coisa que seria uma não-ela, e por último ser “Imóvel” pois o movimento destruiria a Atemporalidade pressupondo um antes e um depois, a “Não espacialidade” por pressupor dois pontos no espaço, e a não indivisibilidade pois pressuporia dois, um espaço (não-ela) e ela.
Parece uma tremenda viagem, mas Parmênides acaba com qualquer pretensão humana de conhecer o que é, pois este seria impossível (não é a conclusão que o autor chega, mas é a que os céticos posteriores chegarão com suas premissas).

O realismo na arte


Outro autor que discute a noção de realidade é Platão, que partindo das ideias de Parmenides, pressupõem que o que é deve existir, pois somos capazes de pensar a respeito disso, mas que esse mundo bizarro de essências não poderia ser alcançado de uma maneira mundana, através dos sentidos, mas somente através do pensamento puro, ou seja, da filosofia contemplativa e da matemática.
Para Platão, quando fazemos referência a alguma coisa, nos referimos ao mundo das ideias.
Mas aonde quero chegar indo tão longe na antiga Grécia para falar de Verdade e Mentira? Muitos podem dizer que sempre usaram “mentira e verdade”, de acordo com o senso comum em situações especificas de suas vidas e sempre funcionou. E irei concordar veementemente com quem me disser isso, mas, retornei até o passado para mostrar o quão vazio é o conceito de Realidade, Verdade e Mentira enquanto algo a contextual a análise contextual e histórica dos termos.
Se não há um mundo das ideias platônico, o que seriam então esses conceitos sobre o qual nos debruçamos?
A Análise do Comportamento entende todo comportamento (animal ou humano) como função de variáveis ambientais, sendo que este para existir precisa primeiro ser emitido pelo organismo e depois selecionado pelas consequências deste.

Estas consequências podem ser de três níveis:

Filogenéticas ou inatas, pois trazem uma maior probabilidade de sobrevivência para a espécie, fazendo o organismo com tal comportamento ter mais probabilidades de se reproduzir e passar o gene que produziu tal comportamento (ou alteração anatomo-fisiológica) adiante.

Ontogenéticas ou individuais, são aquelas que selecionam determinados comportamentos, no repertório variado de um único organismo, tornando elas mais prováveis de se repetirem para este organismo. É o campo em que os analistas do comportamento mais se debruçaram até hoje desde, Skinner e por um motivo prático (é um dos campos com maior facilidade de se alterar as variáveis de controle, e modificar o comportamento).

Sociogenéticos ou Culturais, pois existem comportamentos que dependem de dois ou mais organismos para produzirem consequências, que atualmente são denominadas “Consequências Culturais”. Essas consequências agem sobre o comportamento individual de cada sujeiro, mas mais que isso, selecionam as práticas culturais que eles estavam praticando. Estas por sua vez podem ser copiadas por outros indivíduos por seu valor reforçador individual e continuarem a se “Reproduzir”.


Ao tratarmos da Mentira e da Verdade, iremos muitas vezes nos referir ao segundo nível, em se tratando de como elas funcionam em um nível individual, e muitas vezes (na maioria delas) a um nível de práticas culturais que vem se reproduzindo por um longo tempo (até onde os registros históricos conseguem chegar).
Ao observarmos as definições do dicionário temos pistas sobre o que poderiam ser isso, vejamos a palavra mentira, ela traz implícita em si diversas outras palavras que compõem uma classe de estímulo maior, dentre essas palavras estão: Erro, Engano, Ilusão. Nossa cultura tende em certa medida a punir qualquer prática cultural ou comportamento individual que tenda a produzir o que ela chama de Erro, Engano, Ilusão ou Mentira, que seriam a não correspondência com a realidade.
Skinner chama de Tato o operante verbal que está sob o controle de eventos antecedentes e tem por função cultural “informar” o ouvinte sobre os eventos anteriores para que este possa se preparar para lidar com a situação baseada no relato do falante. Estando isso bem claro, o ouvinte reforça o comportamento do falante e este tende a se repetir novamente. Culturalmente o operante tato é muito incentivado pois aumenta as chances de sucesso para indivíduos e para a própria cultura de sobreviverem.
O nível de “referência” entre o que o falante diz, e o evento anterior não é EXATO no sentido grego, e nem existe algo metafísico chamado correspondência ou significado os ligando. Mas sim uma variável dependente de reforços positivos generalizados do falante, este que reforçara mais, se for melhor sucedido no seu trato com o ambiente tendo como antecedentes o relato do falante.
O conceito de verdade seria uma tentativa cultural de descrever um Tato que se aproxima muito do evento anterior Tateado. Esse tipo de relação verbal é chamada por Skinner de Tato Puro.
Mas porque mentimos se o “Tato Puro” é uma prática cultural incentivada?
Não só de reforços positivos se fazem as contingências, muitas vezes ao tatearmos para alguém acabamos por contar coisas nem tão “agradáveis” para essa pessoa, um bom exemplo disso é dequando contamos que fizemos algo anteriormente que prejudicou essa mesma pessoa, ao relatarmos isso além de informarmos essa pessoa (a função de tato) nosso operante verbal tem também a função de estímulos aversivo condicionado (Condicionamento Pavloviano ou Respondente). E essa pessoa tenderá a não nos reforçar e mesmo a ela própria de nos punir de alguma forma.

Quando um organismo entra em uma contingências punitiva (é punido) respostas alternativas e concorrentes com a resposta punida são fortalecidas, e em se tratando de comportamento verbal, o organismo passa a autoeditar seu comportamento verbal com mais frequência.
Autoedição é o comportamento de modificar seu próprio operante verbal (Ouvinte e Falante sob a mesma pele), antes mesmo dele ser publicado (falado publicamente). 

Além disso qualquer distorção no relato (Tato) em relação ao estado anterior de coisas (tateadas) e que diminua a probabilidade de receber uma punição do ouvinte e potencialize as chances de receber um reforço é maximizado.
Nesse instante o Tato deixa de ser “Puro” e passa a ser mais controlado pelas consequências do que pelo estado antecedente, Skinner vai chamar esse operante de Tato Impuro.

Por exemplo:

A mãe pergunta para o filho:
- Você fez a lição da escola filho?
E o filho não tendo feito ainda por ter jogado vídeo-game o tempo livre inteiro, e por já ter passado por situações semelhantes em que contanto a verdade para a mãe levou uma bronca ou mesmo perdeu o acesso ao vídeo game diz:

- Ainda não mãe, eu estava ocupado organizando meu material.
         Tato                           Autoedição: Tato Impuro.

Mãe punindo a filha depois dessa ter lhe contado a verdade sobre o que aprontou.

Este exemplo configura um exemplo do que tentamos definir até agora como mentira, ou seja, uma resposta verbal que está mais sob o controle de eventos consequentes do que de eventos antecedentes.
Outro operante verbal muito importante nesta discussão é o Mando.
Skinner define o Mando como o operante verbal sob controle de uma operação motivadora e que especifica o reforço estabelecido pela operação.

Ex:
Operação Motivadora Estabelecedora Condicionada: Uma semana sem tomar Coca-Cola, a Visão da Coca-Cola.
Operante Verbal: Mando
- Mãe, me dá um copo de coca?
Mãe vai e dá um copo de coca.

O Mando é um operante mais importante para o individuo do que para a cultura, diferentemente do Tato que é mais importante para o ouvinte e para a cultura. Muitas vezes também o mando tende a não ser atendido, gerando uma situação aversiva para o falante e como no exemplo do Tato, o comportamento desse tende a variar, até formas mais efetivas sejam selecionadas.
Um dos processos que é também selecionado nestas situações é o Autoclítico, ou o operante que altera partes ou sequencias de outros operantes verbais, além de entonação, frequência, expressões faciais, visando um melhor controle do falante sobre o ouvinte.
Por Favor, Obrigado, Com licença, dentre outros exemplos são autoclíticos que aumentam a eficácia de Mandos, tornando o ouvinte mais apto a atender e reforçar o falante com o reforço específico.
Muito embora isso eficiente, muitas vezes não é suficiente, pois existem situações em que o falante não pode dizer claramente o reforço que foi estabelecido pela operação motivadora.

Por exemplo:

Um Rapaz que deseja manter relações sexuais com sua colega de faculdade Joana.

Ele não pode simplesmente pedir, pois a probabilidade dele emitir esse operante e não ser atendido (ou até mesmo ser punido com um tapa na cara), é muito grande.
Ele então diz o seguinte (auto-editando, e autocliticando)
- Joana, você pode me ajudar a terminar o trabalho hoje a noite lá em casa?
A moça então aceita o convite, dando contexto para inúmeros outros encadeamentos para seduzi-la sejam emitidos durante o “trabalho”. Aumentando (mas não dando certeza) a probabilidade do rapaz conseguir o reforço estabelecido.

Esse ai tá emitindo muitos tatos impuros, tatos disfarçados de mando e mandos distorcidos para conquistar a mocinha.
Esse tipo de operante que ele emitiu chama-se “Mando Distorcido”, pois o rapaz emitiu um mando aparentemente especificando um reforçador (ajuda no trabalho), quando na verdade o reforço “real” é a possibilidade de manter relações sexuais com Joana.
Esse também é um bom exemplo de mentira, agora sob controle de reforço positivo, diferentemente do primeiro tipo que era sob controle da fuga esquiva da bronca da mãe.
Outro exemplo de Mando Disfarçado são os discursos políticos, carregados de (falsas)promessas, ou mesmo propagandas de produtos (como lanches que parecem saborosos e imensos mas que são menores que um punho fechado ao vivo).

Odorico Paraguaçu, um exemplo caricato de uma grande parcela de políticos Brasileiros que mentem de diversas formas e com diversas funções.
Para acabar temos ainda uma espécie de mando que tem a topografia de um tato, chamado por Skinner de Mando Disfarçado de Tato.

Ex:
Em sua casa já com Joana, ajudando-o em seu trabalho, começa a elogiá-la da seguinte forma:
- Você é uma pessoa muito legal, vindo aqui me ajudar.
Mais tarde.
- Sabe nunca tinha reparado o quando você era bonita.
Etc....

O rapaz vai emitindo operantes verbais que se parecem Tatos, pois descrevem estados de coisas presentes, mas, visa conquistar pequenas modificações comportamentais de Joana até o reforçamento final, A Relação Sexual (que talvez não chegue no mesmo dia, talvez um beijo ele consiga...rsrsr)
Uma ressalva importante, nessa situação o Rapaz não está necessariamente mentindo (se seus Mandos distorcidos descrevem a situação como “Tatos Puros” não é uma mentira, mas a mentira pode acontecer também caso o rapaz “exagere” atributos e ações da moça para tentar melhorar suas chances).

Conclusão:

Vimos que Verdade e Mentira, não são absolutos, e que a filosofia não nos traz um conceito final e satisfatório para os dois enquanto o que são, mas que a Análise do Comportamento pode descrever e explicar quais contingências culturais e individuais produzem e mantem os comportamentos que são chamados de mentirosos ou verdadeiros. Revisamos também que ambos são práticas culturais com seus valores reforçadores relacionados a diferentes situações e grupos, sendo a verdade mais vantajosa para a cultura como um todo, e a mentira uma espécie de escapatória individual (ou de pequenos grupos como os políticos e marketeiros) para situações aversivas sociais, ou mesmo para tornar mais provável a obtenção de reforçadores em situações em que ao “sermos honestos” isso seria menos provável ou até impossível.



* Por esse blog ser um blog Laico, e defensor da Laicidade do estado e na ciência seria contraditório a seus princípios usar o nascimento de Cristo como referências, assim como a rede BBC de Londres farei uso dos seguintes termos: AEC “Antes da Era Comum” e DEC “Depois da Era Comum”

Referências:

 Sobre Filosofia:

- Russell, B. (1959) A História do Pensamento Ocidental. Traduzido do Original Wisdon of the West 2ª Ed. Ediouro (2002). 

Sobre o modelo explicativo da teoria Skinneriana:

- Skinner, B. F. A seleção pelas consequências.

Sobre a análise funcional do comportamento verbal e linguagem:

- Skinner, B. F. Comportamento Verbal.

Sobre a relação entre o indivíduo e a cultura:

- Skinner, B. F. Ciência e Comportamento Humano.

Outras fontes:

- Dicionário Escolar da Lingua Portuguêsa Academia Brasileira de Letras (2009) Ed. Nacional.

Nenhum comentário:

Postar um comentário